terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A primeira casa

A primeira casa construída em Olhos d’Água e seu atual morador, Claudiano Alves Rabelo

Olhos d'Água não é uma povoação muito antiga, mas, como teve suas origens no centenário Município de Corumbá de Goiás, conserva muito dos antigos costumes goianos, herdados dos primeiros habitantes vindos de São Paulo e depois caldeados com índios e ex-escravos. São tradições bastante marcadas por um folclore forte, arraigado, que passa de geração em geração naturalmente. Dentre os tipos humanos típicos, dos mais antigos habitantes, que vivem essas tradições com a alma, está um octogenário filho de regiões rurais adjacentes: Claudiano Alves Rabelo. E AlexâniaTV, no afã de buscar as origens étnicas e culturais do Município de Alexânia, foi à residência de Claudiano para ouvir dele um depoimento que se revelou importante porque ele, com toda sua simplicidade e boa vontade, falou o essencial.

Claudiano Alves Rabelo nasceu em 12 de março de 1922, na fazenda Sabaru, Município de Luziânia. Seus pais: Joaquim Alves Rabelo, goiano; e Francisca Coelho Figueiró, mineira. É casado com Rosa Gomes de Jesus. Seus filhos são numerosos e todos vivos, com exceção da primeira: Oracy, Zélia, Lourdes, Suely, Zaíra e Valmira e Jair, os quais lhe deram 12 netos e cinco bisnetos, “por enquanto”, no dizer dele.

Embora não saiba precisar datas vividas, se lembra bem de que chegou em Olhos d’Água há 34 anos, “por conta de escola, porque estava num lugar que não tinha esse benefício e os meninos estavam no ponto de estudo, e aqui já existia uma escolinha; por isso eu vim, comprei isso aqui para dar o estudo para as crianças. Era uma escolinha fraca, vim para ficar dois anos, aí o Aurelino ganhou para prefeito, trouxe o ginásio, e daí, dos dois anos pretendidos está com 34 anos que moro aqui. Vim para cá mesmo para dar estudo para meus filhos e acabei gostando do povoado, acho que aqui é ao mesmo tempo fraco e forte; fraco porque é pequeno, em quase tudo a gente depende de Alexânia, mas é forte porque temos sossego, paz, solidariedade e amizade”.

Embora tenha chegado bem mais tarde, Claudiano sabe contar a história do aparecimento de Olhos d'Água, porque vivia numa fazenda próxima do local e porque ouviu outras pessoas narrarem os acontecimentos. Ele contou que antes de surgir o povoado, o lugar era chamado Vargem de São Domingos – uma fazenda – e um grande fazendeiro e benfeitor da região, Geminiano Queiroz, fez uma doação de seis alqueires terra para a Igreja, para ser construída uma capela em honra a Santo Antônio. A partir de então, o pároco de Corumbá de Goiás, Pe. Luiz, celebrava missa dominical no local onde está edificado o templo católico de Olhos d'Água, que era um agradável arvoredo. Até que dois habitantes da região, Domingos e Chiquinho tomaram a iniciativa de construir a igreja, e a partir da igreja construída a povoação cresceu e hoje, em vista do que Claudiano conheceu, “virou uma verdadeira cidade”, como ele afirmou.

O loteamento foi feito pelo Pe. Luiz, que contratou um agrimensor, mediu, demarcou, dividiu, loteou e vendeu os lotes. As primeiras construções foram a igreja e a casa de residência de Claudiano, a mais antiga e original de Olhos d'Água, que ele adquiriu do pioneiro Inácio de Souza. Depois de edificadas a capela e a primeira residência, teve início um processo de povoação, lento, gradual e seguro, com gente chegando de toda parte, até que desapareceu o nome Vargem.

O nome de Olhos d'Água foi posto na localidade em virtude da peculiar mina de água localizada na zona urbana, no meio de uma avenida, antigamente com muita água, uma verdadeira torrente, alegria da meninada e de grande utilidade para as lavadeiras de roupa. Mas, segundo Claudiano, “depois que fizeram os poços artesianos, a água diminuiu e agora, na seca de 2007, pela primeira vez a água secou totalmente”.

As festas
Vários festejos compõem o mapa das tradições de Olhos d'Água, todos conhecidos e apreciados pelo depoente Claudiano. Segundo ele, a festa mais importante é a de Santo Antônio¸ “muito boa, mas temos também a festa do Troca, aliás, são quatro festas, a de Santo Antônio em julho, a festa de São Sebastião e os Troca, um no primeiro domingo de junho e outro no primeiro domingo de dezembro”. Outra manifestação folclórica importante são os tradicionais e imperdíveis pousos de Folia, constituídas pelas folias do Divino Pai Eterno, de Santo Antônio e dos Santos Reis. Claudiano narrou que “quase todo ano eu dou pouso aqui em casa. A Folia é religiosa, vem a bandeira, o pessoal com as músicas, pousa, brinca a noite inteira dançando o catira, o pousento dá a janta para o pessoal, dá o café à meia-noite, dá o almoço no outro dia. São de dez a 15 dias de giro”.

O catira é um costume importado de São Paulo e Minas Gerais e enraizado nas tradições goianas, onde está presente em todas as regiões, mas na tradicional Olhos d'Água a dança tem um sabor especial, que é a adesão de praticamente todos os habitantes, inclusive da juventude. “Temos uns violeiros bons, que batem a caixa aí até o dia amanhecer, ficam todos tomando umas pinguinhas, ficam com a barriguinha cheia e dançando e o que mais tem é umas meninas para dançar”.

Heroísmo
Não renegando seu bravo e forte sangue guerreiro herdado dos bandeirantes paulistas, Claudiano cometeu um verdadeiro ato de bravura e heroísmo ainda na juventude, ao defender a honra de sua irmã, ainda que com sangue, não lhe sendo oferecida alternativa menos traumatizante e quase fatal. Ele contou para AlexâniaTV:

- Tinha um sujeito lá na região por nome Manoel, o qual não tinha morada, vivia andando, tinha o seu dinheiro, comprando gado e vendendo, e não respeitava família de ninguém, chegava e atacava a casa dos outros e o que ele queria fazer ele fazia. E lá na fazenda, meu pai estava viajando e eu tinha um irmã chamada Isabel, aí um dia chegou um peão dizendo que o seu Manoel ia lá buscar a Isabel, que era minha irmã mocinha. Aí um dia nós estávamos moendo cana, quando o dito cujo apareceu no caminho montado numa mulona, chegou, parou e falou:

- Boa tarde. Eu respondi: Desamunta, seu Manoel. Ele apeou da mula, aproximou-se, ofereci para ele açúcar de engenho, garapa, mas ele não quis. Era pelo meio-dia, nisso a Isabel veio trazer um café para dar para os peões, a tal merenda, e quando ela despontou lá no caminho da casa, ele falou:

- Ah, ela adivinhou, ela evém.

- Aí quando ela chegou, a peonada, que já sabia, foi escapulindo de um por um, ficou eu, um tal de Mané Italiano e a Isabel com a bandeja de comida que trouxe. Aí ela me perguntou:

- Cadê os peão? Eu falei que eles tinham saído. Nesse momento o tal Manoel foi direto no assunto:

- Não, é comigo, eu vim te buscá.

- Aí, preocupado, eu falei: seu Manoel, não faça isso não, a menina não quer ir. Aí Isabel repetiu:

- Eu não vou não. Mas ele pulou no braço dela falando “sobe na garupa da mula, já tá arrumada, eu levo ela, amanhã ou depois eu trago”. Ele pegou ela pelo braço e foi puxando e ela gritando:

- Me acode, me acode, Claudiano. Então eu falei para o Manoel Italiano: vocês vão mexendo aí que eu vou ali dentro de casa buscar um sebo para botar na taxa – lá a gente usava botar sebo no melado – mas não foi isso, dei essa conversa mas fui lá, peguei um revólver que eu tinha, guardei no bolso e voltei, a menina chorando e ele segurando o braço dela. Por fim eu disse: seu Mané solta a menina, que ela não quer ir, mas ele insistiu”:

- Qual é o que, você não manda não, quem manda sou eu. Eu repeti dizendo a ele que não fizesse aquilo, mas ele continuava tentando arrastar a menina, ela tornou a me gritar, aí eu arranquei do revólver e atirei no braço dele, que estava segurando o revólver apontado em mim. Ele puxou o dedo, a bala pegou aqui na barriga e saiu lá atrás, mas Deus ajudou que eu dei uma volta e atirei de novo, saiu outro tiro que pegou dentro do ouvido dele. Foi pá, ele caiu e morreu na hora. Os peões ouvindo aquele tiroteio voltaram, a menina escapuliu da mão dele correu para dentro de casa.

Nessa alturas surgiu o dilema: o que fazer com o corpo? Claudiano baleado com uma apavorante hemorragia, mas um amigo da família, chamado Tonico Pedra, tomou rápida iniciativa, amarrando o cadáver no lombo da própria mula e soltando no caminho. O animal pegou o trecho com a fúnebre carga e, ao descer uma serra existente nas proximidades, passavam umas pessoas que viram a cena, desamarraram o corpo e o atiraram na ribanceira, num buraco inacessível.

O depoente, entretanto, ficou baleado e sangrando muito. Foi quando retornou seu pai, que, vendo o filho mal, morrendo, mandou chamar “tio Totó”, como afirmou Claudiano. “Ele veio e falou que talvez eu não escapasse, mas se descobrissem e pegassem um urubu ele tirava o veneno da bala. Tinha morrido um cavalo perto, os peões correram lá e com muito jeito pegaram um urubu, chegando botaram no pilão, socaram aquilo bem socado com a mão de pilão, do jeito que chegou, com pena e tudo, estava até meio vivo, depois botou aquela massa num pano, torceu, tirou uma caneca de caldo e eu tomei. Sabia que ia morrer mesmo, tomei. Quando acabei de tomar, brotou um arroto de dentro de mim e eu comecei a vomitar. O sangue que tinha eu vomitei tudo, aquelas lingüiças de sangue preto, aí mandou na serra buscar água da lixeira e eu tomei e já vomitei a água branca. Aí eu aterrizei e durante 24 horas não vi nada, fiquei na cama morrendo. Só então comecei a acordar, fui virando, melhorando, tomando um remédio ou outro, tratado em casa. Mas sarei. Tinha 22 anos de idade e a menina tinha 19 anos”.

Finalizou Claudiano: “Depois de recuperado, meu pai me levou com todas as testemunhas na Delegacia de Polícia de Luziânia, onde era delegado um senhor Urias. Aí meu pai chegou lá e disse que ‘meu filho é criminoso, fez uma morte por tais e tais razões’. As testemunhas confirmaram. O delegado consultou uns papéis e disse:

- O que eu ia mandar fazer, o seu filho fez. Tem nove denúncias contra esse homem aqui, eu ia mandar tirar a vida dele, mas o seu filho fez o serviço sem querer, portanto ele não deve nada.

Esse é Claudiano Alves Rabelo. Um ancião pacífico, que vive com sua esposa, rodeados pelo carinho de filhos, netos e bisnetos.

Sair de Olhos d'Água?

- Nunca! Sentencia ele com a mesma firmeza com que enfrentou o marginal que pretendeu um dia maltratar sua irmã.

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